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  • Foto do escritorO Baile

Yawo’ti.

Daniel Montoya (texto)

Guadalupe Fernandez Presas (imagem)




Yawo’ti me disse que todo o escritor já sonhou em ganhar um jabuti. Muito sagaz esse jabuti, defensor da ideia de que o papo de escrever por amor não cola. Não, não, se o escrito ganhou uma notinha em rede social ou foi impresso em papel, não se trata mais apenas do dom maior. Só ama a palavra quem não a prende em território físico ou digital.

Não é à toa que os escritores sonham com jabuti, penso. Dizem, ou melhor, está no próprio site do prêmio, que se trata de uma “alusão à emblemática tartaruga presente na obra de Monteiro Lobato, simbolizando a tenacidade e a capacidade de superação de obstáculos — uma representação à altura da riqueza e diversidade da cultura e literatura brasileira”. Seria óbvio demais perguntar quem inspirou Monteiro Lobato, Yawo’ti? Deixa estar, deixa estar, ele responde. Me insinua que a resposta deve ser óbvia ao leitor, a potente máquina que se põe a trabalhar tão logo iniciado o passeio pelo bosque da ficção. No nosso caso, floresta. Yawo’ti é um ser da floresta e suas histórias em Pindó retá são milenares. 

Uma dessas histórias ouvi do próprio Coutinho, ou General Couto de Magalhães, para os menos íntimos. E ele me assegurou que ouviu da boca de alguém que ouviu da boca de alguém que ouviu da boca de alguém que foi testemunha ocular do fato. Eu comecei a falar e logo Yawo’ti me disse, não foi bem assim, mas deixa estar. Não importa, amigo, só estou falando como ouvi o teu caso. 

O jabuti é um grande músico e conhece a arte do bem viver. Flautista de primeira, que gosta d’O Baile, que dança enquanto toca sem parar. Coutinho solfejava a canção do jabuti enquanto me contava essa história: fin, fin, fin, fin, culo, fin, fin. Ele errou, me interrompe de novo. Dá licença? 

Obrigado. Pois o jabuti tocava sua flauta – frauta, me corrige – quando foi abordado pela raposa, me empresta sua flauta seu jabuti? Claro que eu não aceitei a proposta, ele intervém. Sim, o jabuti estava certo que a raposa queria roubar o instrumento. Mas a raposa insistiu com outra abordagem, dizia agora siga tocando jabuti, você é bom demais, instrumentista virtuoso, com suas notas fin, fin, fin, culo, fon, fin, fin, culo, fon, fin, culo, fon, fin, culo, fon, fin, te tein! te tein! tein! A raposa insiste: é bossa nova? Não existe ainda a bossa nova. Pois talvez que você a tenha inventado agora mesmo, ó brilhante jabuti, cortejava a raposa.

O jabuti, lisonjeado, abriu concessão. Muito bem, toma minha frauta, mas não a leve embora! A raposinha tocou, tomou gosto, dançou, mas não frustrou a expectativa: se embrenhou na mata com flauta e tudo. Coitado do jabuti! Virou arara que não voava. Tentou correr, mas sentiu o peso do casco, e quando deu o segundo passinho a raposa já estava longe, muito longe. É verdade essa parte, me confirma Yawo’ti, tudo o que eu consegui naquela hora foi gritar, deixa estar, raposa, deixa estar.

O jabuti seguiu as pegadas da raposa até chegar ao rio, mas na água perdeu o rastro. Ele já estava resignado quando viu, na outra margem, um grande tapererbá coberto por um enxame de abelhas. Hmmmm mel-de-pau! Agora a raposa me paga! É, não foi bem assim, deu bem mais trabalho, me corrige Yawo’ti, mas eu falo, calma, só estou te falando como ouvi a coisa toda. É que você não está contando como eu construí a ponte pra chegar do outro lado do rio, ele insiste. Essa parte não tem tanta importância, Yawo’ti. Mas pra mim teve. Eu sei, eu sei, até o Coutinho disse que iria acertar os detalhes dessas histórias quando escrevesse uma na nova edição do livro dele, mas ele morreu, você sabe. Sim, a morte chegou antes que ele esperava. 

Continuando, o jabuti então retira boa quantidade de mel, volta à floresta e se põe no caminho da raposa. Nessa hora eu disse pro Coutinho que aquilo só poderia ser brincadeira, e ele me garante que não, que ouviu da boca de alguém que ouviu da boca de alguém que ouviu da boca de alguém que foi testemunha ocular do fato. Pois teria sido bem aqui que entrou a tal testemunha e viu a cena. 

O jabuti se entoca na terra e deixa pra fora só a cabeça, completamente untada de mel, mergulhado, como se fosse ele mesmo um pequeno tronco de árvore do qual saía uma colmeia farta. Era tanto mel que se formou uma poça âmbar, lustrosa e perfumada ao redor daquele pedacinho de pau. Não demorou muito, passou a raposa com a flauta, acompanhada de uma amiga. Mas aquilo ali por acaso é mel?, pergunta a raposa para sua amiga. Acho que não, acho que é jabuti.  Ela chega perto da poça, molha a patinha e lambe. É mel-de-pau sim! A sede da raposa era tanta que se entregou sem pensar duas vezes. Depois de secar a poça tentou sugar o mel direto daquele toco que brotava da terra. O jabuti, mais rápido que ligeiro, mordeu a língua da raposa e disse, raposa, que é da minha frauta? A raposa se assusta, tenta se fazer de desentendida, diz que não está com ela. O jabuti vai pressionando cada vez mais a língua da raposa, até que ela finalmente entrega o instrumento.

A raposa é muito esperta, mas não é Yawo’ti, ele me diz mostrando a flautinha de madeira e dando uma risada satisfeita. E você tem sonhado com o jabuti errado, mas deixa estar, deixa estar. Depois disso saiu tocando a música do sítio do pica pau amarelo.


*Nota do autor: a aventura do jabuti e da raposa descrita neste texto é a releitura de uma lenda indígena Tupi, a partir do relato constante na publicação de O Selvagem (1876), de Couto de Magalhães (1837-1898). 


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