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  • Foto do escritorO Baile

O fantasma

Vilma Aguiar (texto)

Mónica Defreitas e Nelson Smythe Jr. (imagem)



 

Uma vida quase secular pode deixar muitos traços e muitos arrependimentos. Ele pareceu passar ao largo disso.


Je ne regret rien, poderia ter sido o slogan de sua vida. Sempre altivo, sempre superior, sempre com a razão. No regrets.


Mas sua presença, ele foi apagando à medida que envelhecia. Primeiro vendeu a casa com a cerquinha de balaústra branca. Depois foi vendendo os móveis, os livros e por fim, doou também suas roupas. Morreu como um monge, quase despido, sozinho; mas com um celular na mão. Para minha surpresa, nunca deixou de ser um homem do seu tempo.


Quando ele partiu, um portal se abriu. Um portal cheio de terabytes.


Terabytes, um trilhão de bytes. Conceito e grandeza que me escapam. Só sei que é tão imenso e imaterial quanto a ausência e a presença dele na minha vida.  

Seus terabytes foram minha herança. Não montanhas de fotografias, montanhas de bytes. Nenhum espaço na estante, nenhuma traça que comeria suas coisas como os vermes já comem seu corpo. O trabalho do tempo para tornar tudo pó dispensado.


Só restaram seus arquivos na nuvem.


E eu penso nesta nuvem psicodélica em que imagens borradas do século XX dançam no meio da chuva que não caiu.


Falei dessa imagem para o meu filho e riu de mim.


Mãe, isso é uma metáfora para enganar os trouxas que não querem pensar que suas vidas estão sendo guardadas em supercomputadores em fazendas mortas espalhadas pelo mundo. Data centers, mãe, não nuvens, me disse. Mas nuvem parece anônima e fofa.


Ele não teve pena de me retirar a ilusão, mas eu preferi ficar com minha nuvenzinha carregada das imagens borradas e banais que fazemos agora só porque podemos e porque tudo pode se transformar em bytes.  Todo o passado do mundo, toda a vida de uma pessoa.


E o problema era justamente esse. A nuvem dele podia ser agora minha. Ele que quase tinha desaparecido há décadas não se esqueceu de me deixar como herdeira. A herdeira do boleto do google, mas também da chave para conhecer cada arquivo que foi uma pausa, um impulso ou um cálculo. O momento em que ele sacou o celular e se deu o trabalho de fazer uma fotografia. Uma coisa que quis reter, quis imortalizar ou apenas fugir do tédio de horas mortas. Coisas que desconheço e me escampam e que fazem dele um enigma ainda maior. Por que gravar uma coisa e não outra? Nunca saberei e talvez ele mesmo não o soubesse.  

Essa avalanche de arquivos  que são as imagens mas também são os emails, os documentos, os anúncios de sapato, de bebida, de camisinha, de remédio para diabetes que ficaram em suas caixas de entrada. O joio e o trigo misturados para sempre.


Os vídeos que ele gravou para mim talvez me revelando a vida que não conheci. As desculpas esfarrapadas. Ou a última explicação que o absolveria de seus pecados.


Talvez alguns segredos, suas taras e seus temores mais íntimos. Seus rastros. Palavras e imagens que formam esses trilhões que minha imaginação só consegue conceber em estado líquido, como um oceano, talvez o Pacífico. Um oceano que não posso navegar.   


É tudo que não quero saber. Mas como não olhar pela fechadura?


São terabytes que me enredam agora como uma maldição. Nunca vou conseguir me livrar dessas sombras que foi sua vida, porque agora sua existência depende de mim.


Um comando. Delete. Ou uma conta mantida com a recorrência do cartão de crédito.


Posso privar meus filhos de conhecer um dia esse homem que jamais esteve perto?


Divago, mas Alexa me tira da letargia me lembrando do remédio que devo tomar com sua voz estudada e confortável. Olho pela janela. Os novos fantasmas são reais e moram em fazendas mortas.

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