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Primavera

  • Fabrício Nunes / Ímpar
  • 27 de set. de 2023
  • 4 min de leitura

Fabrício Nunes (texto)

Ímpar (imagem)




Nem terminou agosto ainda – mas agosto nunca termina – e os jasmins já estão cheirando que é uma miséria. E olhe que eu sou louco pelas noites perfumadas, pelo vento quente que vem trazendo aquele ar floral, dando aquela impressão de que sou um bicho vivo e olfativo, como um gato ou um cachorro, me guiando por aí mais pelo cheiro das coisas que pela visão, farejando calçadas, jardins, muros e esquinas. Mas sei lá o que está acontecendo: está um agosto quente, dias de verão sem fim nessa cidade de invernos gelados. Agora o sol começa a cair, e logo os jasmins espalhados por aí estão disseminando o seu cheiro de terra úmida, de promiscuidade vegetal, de desejo em forma de estames e carpelos ensandecidos. E o perfume do jasmim está deixando todo mundo maluco.

No primeiro dia em que ele veio, eu estava voltando da casa dos meus pais, umas nove e meia da noite. Virando uma esquina, o odor me deu um tapa na cara, como se eu tivesse entrado em um mundo doce e azedo, perfumado e nauseante, que me deu vontade de chorar, de voltar a ser criança, de tomar banho de mangueira, de correr pelado no jardim. Falei com a minha irmã no dia seguinte e ela também reclamou do perfume do jasmim que vem do jardim da casa dela – ela mora numa dessas casas boas, com quintal e churrasqueira, é casada, tem emprego, duas crianças: essas coisas de adulto, diferente de mim, que sou o encostado da família. Daí a pessoa me liga – quem é que liga hoje em dia? – para contar que o jasmim do jardim dela está deixando ela doida. Diz que chegou da padaria à tardinha, sol se pondo, as duas meninas no carro, foi abrir a garagem e estacou: “me deu vontade de lamber o cachorro, lamber as crianças, lamber o pneu do carro”, disse ela. Botou o carro para dentro, foi levar as crianças para janta, para banho, mas ela mesma nem conseguiu comer. Deu comida para as pequenas e foi dar banho nelas: durante o banho, conta ela, deu de comer a espuma do sabão, do shampoo. Disse que comia de mãozada, que lambia os dedos, que era a coisa mais gostosa do mundo; e ela me contando isso pelo telefone era como se contasse uma experiência sexual pecaminosa, uma sacanagem suja e gloriosa.

Outro dia cheguei em casa tarde – fui buscar uns pastéis, de janta, da pastelaria da esquina, típica coisa de encostado – e na frente da portaria do meu prédio tem um jasmim desses de trepadeira, o tal jasminzinho dos poetas. E ali perto do portão estava aquela nuvem invisível de odor nauseante, e logo que entrei dentro dela senti uma vontade inexplicável de sentir a textura dos pastéis, de comê-los não pela boca, mas pelo tato, de absorvê-los pela pele, de ser parte dos pastéis, de ser eu mesmo pastel de queijo, de carne, de palmito, de massinha crocante e gordurosa. E ali, a poucos metros do porteiro, comecei a esfregar os pastéis na cara, no cabelo, sentindo a umidade quente dos recheios no rosto, na nuca, dentro do ouvido, enfiando os pastéis dentro da camisa, dentro da cueca, num frenesi incontrolável de desejo pela meleca, pela desordem orgânica da comida sobre a pele, pela gordura impregnada nas roupas. O porteiro estranhou? Nada, também devia estar contaminado pela loucura do jasmim: ficou me olhando com um sorriso bobo, me deu boa noite quando entrei para ir dormir sem janta, os olhos arregalados no escuro, de medo do cheiro das florzinhas pelas ruas.

Ontem minha irmã me ligou de novo. O marido dela está sem trabalhar e está em licença médica: teve um surto psicótico, dizem. Sei muito bem que não é isso, ou não é só isso. Diz que era final de expediente, e ele pegou todas as garrafas térmicas de café da firma – aquele café já meio morno no final da tarde – e encheu a lixeira de papéis como se fosse um balde. Daí ele ia tirando as roupas e enfiando no café, e depois vestia de volta. Enfiou camisa, vestiu de volta; tirou a calça e meteu no café, vestiu de volta. Tirou sapato e meia, mergulhou no café morno, e vestiu de volta – e tudo isso, dizem, gemendo de prazer. Os colegas? Pelo que ela me contou, ninguém estranhou: alguns riram, outros fizeram outras coisas mais estranhas ainda. Teve gente que foi parar no hospital com corretivo líquido no olho, gente que desmontou a impressora para chupar o cartucho de tinta. Metade da firma em licença médica, todo mundo surtado, uma loucura.

Eu, que sou um encostado, estou evitando sair na rua, fico em casa vendo televisão. Nos jornais não está noticiando nada, mas parece que trocaram quase todos os repórteres: quem está dando a notícia, parece, são uns estagiários gaguejantes, jovenzinhos recém-formados. Um ou outro aparece meio descabelado, a maquiagem toda esquisita, e todo dia uma reportagem ao vivo é interrompida sem qualquer explicação. Outro dia o repórter estava dando a notícia e o câmera, ao invés de focar nele, ficou filmando um cachorro que estava fazendo cocô.

Ontem liguei para meus pais mas não consegui conversar com eles: minha mãe atendeu e só ficava dando gargalhadas, e eu ouvia as gargalhadas do velho ao fundo. Sabe Deus o que estavam aprontando. Minha irmã me ligou de novo para contar que cancelaram as aulas da escolinha das meninas: por dois dias seguidos, na hora do recreio, a criançada se jogou no gramado do pátio e começou a comer a grama, arrancando os tufos com as mãozinhas e enfiando na boca, a baba verde escorrendo das bocas gulosas dos ruminantezinhos.

Lembrei que na escolinha delas, está lá: aquele mesmo jasmim dos poetas na grade do pátio. Dizem que quem plantou foi uma antiga diretora, que foi despedida depois que encontraram um monte de cabelos – aparentemente das crianças – dentro da gaveta da escrivaninha dela. O que ela fazia com esses cabelos, ninguém sabe.


 
 
 

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