Visita
- Vilma Aguiar
- 21 de nov. de 2024
- 3 min de leitura

Fabricio Vaz Nunes (texto)
Inteligência Artificial + Vilma Aguiar (imagem)
Ela vem quase toda noite, e me conta histórias.
Às vezes são histórias de vampiro: não as histórias comuns do vampiro aterrorizando mocinhas, mas histórias do dia-a-dia, ou do noite-a-noite, dessas criaturas esquecidas pela morte. Ela me conta sobre o sonho que o vampiro tem durante os dias, quando dorme no seu caixão; sobre as saudades que o vampiro tem do passado, ele que é feito de tanto passado, de tanto tempo. As dúvidas que o vampiro tem sobre o futuro, o seu desejo de ver uma aurora, um pôr do sol, que não seja em uma foto ou em um filme: aliás, segundo ela me conta, todo vampiro adora filme; óbvio, mas eu não tinha pensado nisso. Faz sentido, quanta gente não convida o vampiro para dentro de casa, por cafona que ele seja, principalmente naquelas noites de preguiça, pizza e coca-cola?
São tantas as histórias que ela me conta! Outras criaturas povoam suas histórias, lobisomens, frankensteins... Aliás, eu sei muito bem que ”Frankenstein” é o nome do pai da criatura, mas chamá-lo de “criatura” é repetir o seu abandono por parte do seu criador, que não teve sequer a decência de dar um nome ao seu filho. Pelo que ela me conta, essas criaturas, digo, frankensteins, gostam especialmente de crianças – e não me entenda mal, não é para fazer qualquer maldade, mas para brincar. Esconde-esconde, pular corda, brincar de casinha: essas coisas bobas de criança. Aliás, frankenstein só faz maldade com o seu criador, ou então com camponeses enfurecidos, geralmente armados com ferramentas agrícolas. Em uma das histórias que ela me contou, o frankenstein fugia em uma colheitadeira, situação deliciosamente ridícula, mas curiosa: ele não é movido a eletricidade, segundo dizem? – então, de certa forma, é uma máquina operando outra. Mas pensando bem, gente normal também não é movida por energia elétrica?
Lobisomem já é outra história: meio homem, meio bicho, ou temporariamente homem e temporariamente bicho: temporariamente homem, porque lobisomem combina melhor com homem e muito menos com mulher. Nas histórias que ela me conta, todo lobisomem tem uma namorada, e ela sempre se dá mal, pois o lobisomem é um péssimo parceiro amoroso. Nada a ver com uivar para a lua, o que é até tolerável: quem nunca sentiu vontade de uivar para a lua? O que é ruim mesmo é que o lobisomem é um péssimo cão, grande demais, furioso demais; como homem, é neurótico, ciumento e narcisista, faz escândalos, fuça o celular da namorada para ver com quem ela conversa, para quem ela dá “likes”, essas coisas. Sim, tem um monte de lobisomem por aí, mas a peculiaridade do lobisomem de verdade é algo que ela nunca me explicou direito. Mas ninguém nega que a lua cheia deixa todo mundo meio maluco, meio bicho ou meio fera.
Claro que ela também me conta histórias de fantasmas: desde fantasmas benévolos ou carentes – que têm as tais coisas a resolver, que espantosamente nunca têm a ver com inventários e outras questões legais que envolvem todo defunto – até assombrações violentas e destrutivas, espíritos vingativos que destroem coisas, quebram pratos e móveis, batem portas e jogam pessoas do alto das casas. Os fantasmas, como sabemos, estão por todo lugar, porque existe muita gente morta no mundo; aliás há mais gente morta do que gente viva, e, como disse alguém, o estranho é estar vivo. Os que eu mais gosto são aqueles que se escondem em móveis ou em instrumentos musicais: são armários em que espreita a tia alcoólatra, pianos nos quais o avô bigodudo toca três notas da música preferida em horas perdidas da madrugada, gabinetes de banheiro em que a visagem atormentada vem atrapalhar a maquiagem da mocinha vaidosa. O que me lembra: os fantasmas gostam especialmente de banheiros, pois sentem saudades das operações corporais mais básicas, que é o que, afinal de contas, faz das pessoas vivas... pessoas vivas.
São tantas histórias que ela me conta! Tem boitatá, curupira, saci; tem o cucuy, tem sídhe e yokai, e assim por diante... Mas agora não tenho tempo: só à noite, quando descanso do meu interminável trabalho, é que ela me visita, e posso descansar, e ouvir o que ela vem me contar. Tenho tanta gente para cuidar, e as histórias dela me consolam, me fazem sonhar acordado, enquanto cuido de todo um reino, ele também com suas infinitas histórias de dor e tormento. A eternidade é um fardo – e os vampiros têm apenas uma vaga ideia disso, pois, enfim, há estacas de madeira e decapitações – mas as noites em que ela me visita fazem valer a pena. Aqui, entre as chamas, ao som de choro e ranger de dentes, eu reino e espero – à meia noite no meu quarto, ela vai surgir: venha, estou pronto para te ouvir.
Comments