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  • Fabrício Nunes / Ímpar

Emprego

Fabrício Nunes (texto)

Ímpar (imagem)





Oi meu bem. Ai, tudo mais ou menos, né. Aquelas coisas. Tudo acontecendo meio junto. A impressora? Não, seria muito óbvio. Começou foi com o pisca-pisca do carro, lembra? Ao invés do tic-tac normal, começou a pisca-piscar fora de ritmo. Toda hora aquela encheção de saco, tec, tec, tec-tec, tec-tec-tec, tec, tec, tec-tec, parece um coração descompassado. Mas isso só de noite. Chovendo, então? Como se soubesse que hora vai incomodar mais. Eu que nem entendo nada de carro, parte elétrica, abri o negócio, descobri que tava com mau contato. Enfiei um palito de dentes pra firmar a pecinha, funcionou uns dois dias, fui olhar – cadê o palito?

Depois, a chaleira. A chaleira elétrica que só vaza na hora do fervo na cozinha, eu sem mão livre pra enxugar, é gota fervendo no pé, é a poça que fica na mesinha. Esses dias ligou sozinha, eu vendo tevê e a bicha lá, bróbróbróbró, quem disse que eu liguei a infeliz? Tem uma luzinha azul: fui tomar água de madrugada, a desgraça ligou do nada, eu de cueca quase engasgo de susto. Li manual, assisti tutorial, abri a infeliz, limpei contato, troquei vedação, eu que mal sei usar uma chave de fenda. Agora desliga antes de ferver e vaza bem no treco de pegar: outro dia queimei a mão e fiz café com água morna.

Aí chegou a hora da impressora – até que demorou, né? Impressora wi-fi – tudo que é wi-fi é encrenca pior. Mando imprimir, impressora offline. Desinstalei, instalei de novo, daí ela imprimiu sozinha um texto da matéria do ano passado. Depois offline de novo. Depois imprimiu o que eu queria, frente e verso, só que a frente direita, o verso de cabeça pra baixo. Nessa palhaçada, acabou com meu papel, comprei mais, disse que acabou o toner, comprei mais, daí offline de novo. Daí imprimiu boleto de luz, boleto da internet, boleto de condomínio – quem imprime boleto? Como se dissesse: “você continua pobre”. Desgraçada. Toda vez que preciso imprimir alguma coisa é uns quarenta minutos de ódio.

A smartv, claro. Essa muda de entrada sozinha, eu lá feliz da vida vendo meu streaming de série e a infeliz me troca pra tevê aberta. Altos crimes na Escandinávia e de repente estou em reality de subcelebridade. Tá lá o rei bastardo matando a mãe feiticeira e a tevê troca pra propaganda de ômega 3 com magnésio. Vai da entrevista da Taylor Swift pra Ivete apertando o botão da criança cantora. Depois volta pra três episódios pra frente, inventou de me dar spoiler. Cliffhanger de gremlin é Ana Maria Braga no meio do Star Trek novo. Atualizar? Claro que sim. Perdi um tempão nisso, fiz umas três vezes já. Daí instalou sozinha um streaming pago do campeonato holandês, tá um inferno pra cancelar.

Daí minha mãe me deu um robô aspirador, lembra? Primeiro dia, aquela beleza: limpou tudinho, voltou pra casinha, carregou de volta, foi que foi. Depois desligou sozinho debaixo da cama, no lugar mais difícil de alcançar. Daí só quis limpar os cantos: o meio da sala tudo cheio de farelo, mas os cantos aquela limpeza. É tarado por tudo que é cabo e extensão, perco mais tempo desenroscando o imbecil do que ele fica trabalhando. Fiz a cagada de esquecer de baixar o saco de lixo e foi aquele xorume de madrugada: o filho da puta ligou sozinho e lambuzou a cozinha inteira com o suco do lixo. Foi a manhã inteira pra limpar a nojeira. Tive que dar banho no robozinho, mas a vontade era de matar ele afogado.

Tá difícil de sair de casa, metade das minhas roupas encolheu – a lava-e-seca deu de secar minhas roupas sem eu ter programado. Agora coloco a roupa suja e fico vigiando o ciclo de lavagem inteiro, senão fico mais sem roupa ainda. Rede social, então? Tipo: aparece story de tela preta no insta, sem eu ter postado nada. Passei horas trocando senha de tudo: sei lá, depois me cancelam sem eu ter feito nada de mais. Se você receber mensagem minha de qualquer coisa, pode desconfiar: não sei se fui eu que mandei, capaz do celu decidir sozinho terminar com você. Tá desse jeito. Desinstalei quase tudo já. Aplicativo de banco, tô morrendo de medo. Boleto eu tô pagando no banco, como faziam os antigos incas.

Não, não vou conseguir sair, desculpa. Esperando o técnico da geladeira. Sim, ela também: fui fazer um bife anteontem e ele tinha congelado; já ontem acabei tomando o iogurte que ficou meio morno durante a noite e estou passando meio mal. Né? Querem acabar comigo. Sei lá, vou mandar benzer tudo, o que é que vou fazer? Pois é, agora sou eu que trabalho pra eles. 



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Yawo’ti.

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